Entro
no trem e não demora até eu ser contagiado pelo sacolejar do vagão se
locomovendo sobre os trilhos. São centenas de
pessoas perambulando pelas estações: trabalhadores; desempregados; pedintes;
vendedores ambulantes; estudantes; mulheres e idosos. A todo instante às portas
se abrem dando início a uma competitiva disputa entre quem precisa entrar e
quem deseja sair. Os trens são diferentes dos ônibus. Aqui tudo é movido pelo
tempo.
Não sei que horas o
trem parte de Santa Cruz, estação inicial. Só sei que chega às 8h e 15 min na
estação de Realengo, na qual eu entro e de onde ele parte rumo à Central do Brasil,
estação terminal. Tenho que chegar ao trabalho às 9h. Desconto, mais ou menos,
os 10 minutos que levo para andar até o escritório onde trabalho. Sendo assim,
ele tem que chegar à Central exatamente às 8h e 50 min. Acredite, ele chega. A
porta se fecha e prende a bolsa de uma mulher que grita como se o maquinista
pudesse ouvi-la. Ele não pode. Isso sempre acontece quando alguém demora a
passar pela porta. Sempre se esquecem que estão num trem. E aqui, tudo é movido
pelo tempo.
Comecei a andar de trem
quando comecei a trabalhar. É mais rápido e fácil. Sem trânsito; sem
engarrafamentos; sem a hora do rush. Demora até você pegar a malícia dos trens.
Ainda não decorei todas as estações. Tudo é costume. Com o tempo você se
acostuma com tudo: com os vendedores te empurrando; com as pessoas reclamando
da vida, do vizinho, do país; com os fanáticos discutindo futebol e com os
outros fanáticos com bíblias querendo salvar vidas; a gente aprende a ler o
jornal dos outros só de rabo de olho e até a prestar atenção nas conversas
alheias. No trem, a gente aprende um monte de coisas.
Do meu lado direito,
tem duas mulheres conversando sobre uma vizinha que está doente. No trem, a
gente ouve muito dessas coisas. De vez em quando, aparecem uns doentes pedindo
dinheiro para comprar remédio. Às vezes eu dou, às vezes não. Às vezes eles
fedem a álcool, às vezes, não. Uma das mulheres está falando que a tal vizinha
entrou e saiu do CTI três vezes e ainda resiste consciente. “Graças a Deus”,
disse a outra, surpresa. Não sei se ela deveria agradecer. Pelo pouco que ouço
da conversa, essa vizinha não vai durar mais uma semana. Está agonizando. Às
vezes, é melhor morrer. No trem, todo dia tem alguém assim: moribundo
perambulando de maneira deprimente pelos vagões, com cara de zumbi. Mas a gente
se acostuma.
Do meu lado esquerdo
tem um senhor segurando uma bolsa cheia de coisas dentro. Parece que ele saiu
de casa para nunca mais voltar. “Para onde será que ele está indo?” Eu me faço
essa pergunta várias vezes durante a viagem. Olho fixamente para um dos
personagens do mesmo vagão que estou e tento adivinhar onde aquela pessoa
pretende chegar. Às vezes acerto; na maioria, não.
Na minha frente está um
sujeito vestindo um terno elegante. Volta e meia entra um assim dentro do
vagão. Eles olham continuamente para o relógio como se estivessem
constantemente atrasados. Coitados, até hoje não aprenderam a viajar de trem.
Vivem perdendo a hora. Ele está lendo jornal. Mais um leitor desses jornais
práticos, rápidos, de informações vazias e de tamanho tão curto quanto seu
preço. De onde eu estou, só está dando para ler a primeira página. A foto de
uma menina linda, com um sorriso encantador, vítima de anorexia. É engraçado
como as pessoas se preocupam tanto com o corpo, a ponto de ficarem loucas. No
trem, estão todos sempre tão apressados, recém-acordados, compromissados, que
não têm tempo sequer para tomar um café da manhã. São anoréxicos devido ao
cotidiano agitado. Loucos pelo excesso de trabalho. Também existem pessoas
bonitas e bem arrumadas andando pelas estações. Se você tiver sorte, talvez,
uma pegue o mesmo trem que você, entre no mesmo vagão que o seu, e até sente do
seu lado. Mas aí seria sorte demais.
Estação Deodoro. Aqui é
onde o tumulto atinge seu ápice. A confusão é tamanha que, se você não se
cuidar, pode acabar fora do vagão. As pessoas se movem, se empurram e se
apertam. Dá impressão que vai sair suco, de tanta gente espremida. Alguém
descuidado, ou empurrado, pisa no pé de uma criança que começa a chorar. A mãe
tenta inutilmente encontrar o imprudente no meio de tantas faces. É uma busca
em vão. Ela olha fixamente para um vendedor. Os vendedores sempre levam a
culpa. Só são bem-vindos quando estão vendendo algo que alguém precisa. Não
deve ser difícil encontrar clientes. Eles vendem de tudo. Esse, por exemplo,
está com um monte de tralhas que vão desde pilhas a escovas de dente. Acho
incrível a habilidade que eles têm de andar tranqüilamente pelos vagões,
carregando toneladas de mercadorias sem perder o equilíbrio. Seus frágeis corpos
desafiam a lei da gravidade.
O tempo passa e deixa
para trás as estações Magalhães Bastos; Vila Militar; Deodoro; Marechal...
Engenho de Dentro; Mangueira; Maracanã... O trem esvazia. As mulheres continuam
conversando. Mas o senhor da bolsa cheia não está mais do meu lado. Desapareceu
como num truque de mágica. O homem de terno já não lê mais seu jornal. Está
sentando, de óculos escuros e dormindo. Agora que o silêncio se estabeleceu
novamente no vagão, dá para ouvir os evangélicos gritando e pedindo bênçãos ao
Senhor. “Alguém quer entregar sua vida a Deus?”, grita o homem. Acho que
ninguém se prontificou. Nunca vi ninguém se converter em vagão de trem.
Uma das mulheres diz
que seu sobrinho sairá da prisão em dois dias. Dentro do trem os assuntos mudam
com a mesma velocidade que vemos o cenário lá fora passar pela janela e ficar
para trás. Observo o trânsito nas ruas e me sinto poderoso sabendo que estou
viajando numa velocidade bem superior a dos automóveis. O conforto pode não ser
o mesmo. Mas o importante é que vou chegar antes. No caminho de volta essa
sensação parece aumentar. Quando penso que em breve estarei em casa, no
conforto do meu lar, antes de todos eles, agradeço por ter entrado no vagão.
Enfim, Central do
Brasil, estação terminal. Daqui a diante, cada um seguirá seu próprio caminho;
seu próprio rumo. Rumo este, que não será compartilhado com os demais
tripulantes do vagão. Uns irão para o trabalho; outros tentarão encontrar
trabalho; uns irão à escola; outros pedirão esmola... E eu me pergunto: “Será
que a tal vizinha vai melhorar? Alguém entregou sua vida a Deus? O homem de
terno conseguirá chegar a tempo? O que aconteceu com o senhor da bolsa?”
Destinos distintos de pessoas desconhecidas que se
cruzaram num simples vagão de trem. A vida é assim mesmo, ainda mais quando se
anda de trem. A gente vai mantendo um contato diário com pessoas que não
sabemos o nome. Ouvimos conversas; lemos jornais; somos empurrados; lutamos por
um assento... Tudo isso para podermos cumprir com nossos compromissos e continuarmos
na luta diária. Afinal, no dia seguinte, estaremos todos juntos novamente.
Juntos, dentro de um vagão de trem. Mas a gente se acostuma.
Felipe Attie