A
viagem de um jornalista diabético rumo ao buraco negro da hipoglicemia.
A diabetes é uma doença crônica que
atinge cerca de 380 milhões de pessoas em todo o planeta e, de acordo com a OMS
(Organização Mundial de Saúde), esse número tende a aumentar. A OMS calcula
que, em 2030, a diabetes será a sétima principal causa de morte. O Brasil é o quarto país com mais diabéticos no mundo, com cerca de 13 milhões de
portadores. Eu sou um deles.
Desenvolvi diabetes na
adolescência. Anos convivendo com essa doença me forneceram vasta experiência
para lidar com os seus transtornos, principalmente referentes a hipoglicemia.
Meu medo de ficar perneta, cego ou brocha que, segundo a medicina, são
problemas decorrentes de quem mantém a taxa de glicemia elevada, faz com que eu
tome mais insulina do que o necessário. Sim, eu aplico mais insulina do que o
aconselhado pela minha receita médica. Isso condicionou meu organismo a
funcionar com níveis cada vez mais baixos de glicose e o risco de entrar em
coma por falta de açúcar tornou-se parte da minha rotina.
Foi então que decidi
escrever um relato sobre uma crise de hipoglicemia, que costumo chamar de
Hipotrip. Vou descrever cada sensação sentida, enquanto minha glicose despenca
rumo à morte. Perguntei a um especialista o que ele acha sobre essa empreitada
e sua resposta foi: “Isso é loucura! Uma atitude irresponsável e muito perigosa.
A hipoglicemia oferece um risco muito maior ao
paciente, pois, ao contrário da hiperglicemia, os baixos níveis de açúcar podem
levar ao óbito imediatamente”, disse um endocrinologista que preferiu não ter
sua identidade revelada. “Se você morrer, eu não quero meu nome vinculado a
isso”, alertou. Portanto, caro leitor, deu pra notar que a coisa é
séria. Jamais tente isso em casa. Agora, mãos à obra que a viagem é louca. Ah!
Em relação ao nosso médico, vamos chamá-lo de doutor Ricardo.
19h22
Glicose:
148 mg/dl
Minha glicose está um
pouco alterada. “A taxa de glicose não pode ser maior do
que 99mg/dl para pessoas não diabéticas e 110 mg/dl para diabéticos”, explica
Ricardo. Aplico 6 unidades de insulina de ação rápida e aguardo a Hipotrip
começar. Ricardo diz que “os calafrios e a sudorese, quase sempre, são os
primeiros sinais da hipoglicemia, mas isso pode variar de acordo com o
organismo da pessoa”.
21h35
Glicose:
56 mg/dl
Enquanto finalizo
algumas ilustrações que estão pendentes, começo a sentir um leve mal-estar. Uma
sensação de fraqueza que me deixa indisposto para continuar desenhando. Meus
lábios tremem como se minha boca quisesse dizer alguma coisa por conta própria
(talvez, me xingar por estar submetendo meu corpo a algo tão estúpido). Em
seguida, meu corpo começa a coçar. É como se meus músculos estivessem
formigando. Um comichão perturbador que brota por debaixo da pele. Por mais que
eu esfregue, nada põe fim a essa incomoda sensação. Não tenho escolha, senão,
deixar o papel e caneta de lado e abortar o desenho.
Minha namorada liga e
diz que está vindo pra minha casa. Acho uma boa ideia. Pelo menos terei alguém
pra encontrar meu corpo, caso o pior aconteça.
22h10
Glicose:
42 mg/dl
As “formigas” que
caminhavam dentro de mim desapareceram. Meus pés e mãos estão gelados. Minha respiração está densa. Preciso
puxar mais ar do que o necessário para respirar. Coloco o filme Gata Velha
Ainda Mia (com Regina Duarte e Bárbara Paz) para me distrair. Recebo uma
mensagem da minha namorada dizendo que vai se atrasar. Espero que ela chegue a
tempo de me levar ao hospital.
23h
Glicose:
39 mg/dl
Quase uma hora se
passou e minha glicose, apesar de baixa, se mantém estável. De acordo com
Ricardo “quando o organismo está sofrendo uma crise severa de hipoglicemia, uma
quantidade reserva de glicose é liberada como medida de emergência”. Sendo
assim, aplico mais duas unidades de insulina de ação rápida (o que, nas atuais
circunstâncias, pode ser considerado suicídio). O filme continua mas, mesmo com
Bárbara Paz mostrando a bunda e os seios nada é capaz de prender minha atenção.
Sinto dificuldade para respirar. Meus olhos pesam... não consigo me
concentrar... estou me sentindo sonolento... fraco...
23h45
Aceleração cardíaca.
Abro os olhos e estou deitado na cama. Meu coração bate furiosamente contra as
paredes da minha caixa torácica. Apesar do desconforto, eu sei que isso nada
mais é do que meu organismo liberando adrenalina para me manter acordado. Ouço
um barulho vindo da cozinha. Alguém acendeu o fogão. Saio do quarto e me deparo
com minha namorada fumando um cigarro.
“Você chegou tem muito
tempo?”
“Tá maluco? Eu falei
com você. Mas você tava vendo filme e eu vim aqui fora fumar.”
“Não vi.”
“Como assim?! Você
guardou minha bolsa no armário!”
“Eu? Sua bolsa? Não
lembro.”
Então eu percebo que
estive fora do ar por alguns instantes. Essa é uma das características da
Hipotrip. Enquanto minha namorada prossegue com a conversa, meu organismo
começa a implorar por um bocado açúcar. “Durante uma
crise de hipoglicemia, na tentativa de se manter vivo, o organismo prioriza as
funções mais vitais, como a respiração, por exemplo. Com isso, um simples
diálogo torna-se algo complicado de ser realizado”, explica Ricardo.
“O filme é legal?”
“Que filme?”
“O filme que você tava
vendo!”
Para formular uma
simples resposta, eu preciso me concentrar, respirar fundo e ordenar as
palavras mentalmente antes de pronunciá-las.
“É legal! A gata mia!”
“Que gata mia?”
Permaneço calado,
torcendo para que minha namorada entenda o que estou tentando dizer e poupe-me
da árdua tarefa de ter que repetir.
“Você tá bem?”
“OK”, repondo. Em
seguida, abano as mãos para dissipar a fumaça exalada pelo seu cigarro. Uma
atitude compreensível, se não fosse pelo fato de ela não estar mais fumando.
“O que você está fazendo?”
Percebo minha gafe e
tento consertar as coisas dizendo “O seu negócio aí no cabelo... No seu
cabelo... Ele tá vindo pra cá.”
“Que negócio? Você tá
com a glicose baixa?!”, ela pergunta, já conhecendo meu histórico
hipoglicêmico.
Minhas mãos começam a
tremer. Os espasmos rapidamente se espalham pelo meu corpo, dificultando ainda
mais minha respiração. Percebo que a qualquer momento eu vou apagar. Não tenho
escolha, a não ser pronunciar a palavra que serve como sinal de alerta para
todos que me conhecem: “açúcar”.
Toda Hipotrip tem um
ápice. É quando seu corpo, após ter consumido toda sua reserva de glicose,
chega ao esgotamento extremo. A partir daí, você para de raciocinar e começa a
perder os sentidos. “Nesse ponto, se não tiver
alguém para te ajudar, você certamente morrerá”,
esclarece o doutor.
Procuro minha namorada
mas não encontro. Ela desapareceu! Preciso de açúcar. Sinto algo me puxar pelos
ombros e me arrastar para o quarto.
“Fica aqui!”, minha
namorada ordena, colocando-me sentado na cama. Em seguida, ela pega meu
aparelho de glicose e pergunta: “Como liga essa merda?!”
“Tava... eu... desenhando...
açúcar...”
“Anda, me diz! Como
liga essa coisa?!”
De acordo com minha
namorada, nesse instante, eu pego o controle remoto da televisão e aperto
contra o meu dedo. Estou incapaz de diferenciar o coletor de sangue usado para
verificar a glicose do controle remoto de televisão. Preciso urgentemente de
açúcar.
“Existem
duas maneiras de tratar a hipoglicemia. Se o paciente estiver inconsciente é
necessário aplicar injeções de glucagon ou glicose intravenosa. Caso contrário,
a ingestão de açúcar e sucos de fruta soluciona o problema”, explica Ricardo. E
foi exatamente o que minha namorada fez, ao aparecer na minha
frente segurando um copo de água com açúcar e uma lata de leite condensado.
Eu bebo. Conforme o
açúcar entra no meu corpo, meu organismo se recompõe. Meu coração desacelera, a
respiração tranquiliza, os tremores cessam e minha visão volta ao normal. Olho
para minha namorada e seu semblante não é nada bom. Ela está com a cara
amarrada e o dedo lambuzado de leite condensado apontado para mim.
“Que merda foi essa que
aconteceu?”, pergunta ela, num misto de preocupação e revolta.
Penso em explicar os
loucos e doentios momentos que ela acabou de presenciar, mas desisto. De nada
adiantaria explicar. Ela nunca entenderia. Ninguém nunca entenderá. Afinal, se
tem uma coisa que eu aprendi com essa doença é que algumas coisas só podem ser
compreendidas, quando se está com a glicose quase zerada.
Felipe Attie